“Os negros são os testemunhos vivos da persistência de um colonialismo destrutivo, disfarçado com habilidade e soterrado por uma opressão inacreditável. O mesmo acontece com os indígenas, com os párias da terra e os trabalhadores semilivres superexplorados das cidades.”
Florestan Fernandes
“Os negros são os testemunhos vivos da persistência de um colonialismo destrutivo, disfarçado com habilidade e soterrado por uma opressão inacreditável. O mesmo acontece com os indígenas, com os párias da terra e os trabalhadores semilivres superexplorados das cidades.”
Florestan Fernandes

Embora há mais de uma década a Sociologia tenha resolvido a questão da Raça como categoria sociológica válida, por sua emergência como construto social, setores reativos persistem na discussão sobre sua impertinência, com argumentos que redundam apenas na impossibilidade do termo como conceito biológico. (...)

Atualmente, nem mesmo os meios comunicação mais conservadores podem escamotear a realidade da desigualdade, a exemplo do Portal G1, cuja reportagem publicada em 2008 recortamos o trecho transcrito abaixo:

“No dia em que a Lei Áurea completou 120 anos, uma pesquisa foi lançada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontando que a população negra será maioria no País ainda em 2008, mas que a sonhada igualdade ainda está longe de acontecer. Na atual velocidade e intensidade de implantação de políticas públicas, a igualdade entre brancos e negros só deve acontecer daqui a 50 anos. O Brasil tem atualmente mais de 180 milhões de habitantes.”

(...)  Dessa forma as perspectivas não são nada animadoras: “Se a velocidade e a intensidade de implantação de políticas públicas forem mantidas, os pesquisadores acreditam que a igualdade entre brancos e negros só será concretizada daqui a cinco décadas, quando a Lei Áurea completará 170 anos.” (G1)

Está demonstrado, também, como os avanços educacionais, tecnológicos e econômicos alcançados não se traduzem em diminuição do abismo econômico que separa brasileiros de origem predominantemente indígena e africana e os demais de origem nitidamente europeia. Tornou-se uma obviedade falar, pensar, discutir e estudar sobre o “preconceito de cor”, mas ainda hoje o termo Racismo Anti-Negro causa pavor em alguns espaços acadêmicos e, sobretudo no meio jornalístico. Este aspecto impronunciável de relações raciais no Brasil tem seu fundamento no que podemos denominar Pacto Racial Brasileiro, que é um contrato estabelecido entre as partes que compõem a sociedade brasileira mediante o poder político-econômico. No nosso caso, trata-se da reafirmação da hierarquia mediante as origens das populações indígenas, africana e europeia.

O pacto não tem caráter institucional, mas encontra-se proporcionalmente disseminado em todas as esferas da vida social, sendo confirmado nas concepções de identidade nacional, na distribuição de prestígio, status e obviamente na organização do poder e ritualização dos seus símbolos.

Podemos comprová-lo tanto nos eventos artísticos, como também nas geografias humanas das áreas urbanas, nas quais as populações periféricas são predominantemente negro-mestiças, ao passo que vai embranquecendo nas áreas mais nobres e centrais (...).

Tal contrato é um acordo não explícito, constituído no plano simbólico, mas com efeitos práticos e concretos nos âmbitos econômicos, educacionais, religiosos, jurídicos. Esse contrato estabelece uma hierarquia social entre as coletividades. Sua dinâmica inclui pequenos privilégios e dutos individuais de acesso por meio de atividades (lícitas e ilícitas) econômicas, políticas, tecnológicas ou educacionais inovadoras. Esses dutos de ascensão têm sido imprescindíveis para reformulação do pacto e não trazem perigo de ruptura da ordem social. Este contrato foi referendado ao menos em cinco convenções nos últimos 120 anos, quais sejam, em 1889, 1930, 1946, 1964 e 1988. No limiar do século XIX, algumas elucubrações racistas de cientistas brasileiros previam que ao final do século XX a maioria da população seria branca, mas o acaso histórico tem demonstrado o contrário. (...)

O pacto racial brasileiro pressupõe a aceitação pacífica por parte dos negro-mestiços e indígenas de um estatuto diferenciado de cidadania. Este estatuto está relacionado às condições “naturalmente inferiores” de escolarização, trabalho/salário/renda, acesso a saúde, a moradia, transporte público, crédito, ocupação do espaço urbano, securidade social, lazer etc. Os dados atuais não trazem novidades, apenas consubstanciam numericamente e complementam aspectos da retórica dos movimentos negros pós1970.

“No mercado de trabalho, por exemplo, a inserção da população negra e branca difere muito. A começar pela taxa de desocupação, a qual corresponde a 4,5 milhões de trabalhadores negros e 3,7 milhões de brancos desempregados. Os setores econômicos com as piores condições de remuneração, estabilidade e proteção são formados, em sua maioria, por negros. Na agricultura, eles ocupam 60,3% das vagas e em serviços domésticos o número fecha em 59,1%. Além disso, os trabalhadores não remunerados somam 55% e os assalariados sem carteira 55,4%. Dentre os que ganham mais de 10 salários mínimos, os negros correspondem somente a 21,7%, percentual que chega a 76,2% entre os brancos” (Portal G1).

(...) As Instituições Escolares tem sido de fundamental apoio a naturalização do racismo anti-negro, seja por seu viés culturalmente eurocêntrico, seja pela aplicação de critérios de seletividade tido como universais. É, contudo, o trabalho e a renda os mecanismos mais eficazes do controle social dos descendentes de africanos: “Negros ganham menos, trabalham mais, sem carteira assinada e são a maioria em serviços domésticos, agricultura e construção civil”.

A hegemonia da elite branca no Brasil é fato incontestável, mesmo entre alguns setores dessa mesma elite.  Por medo, conformismo ou preguiça muitos preferem não enxergar os efeitos nefastos do racismo anti-negro no Brasil. Empiricamente olhares e vozes críticas se acumulam e avolumam na observação e denúncia desse quadro ao longo do século XX.   Tais vozes dissonantes no concerto nacional é que podemos chamar de Consciência Negra.

(...) O termo Consciência Negra surgiu no contexto da luta contra o Regime Constitucional Nazi-Racista da África do Sul e foi desenvolvido como conceito pelo ativista Steve Biko. No Brasil, a Consciência Negra pode ser entendida como movimento sócio-político-cultural, como parte da luta de auto-emancipação e afirmação cultural dos descendentes de africanos.

Este movimento caminha lento, ambíguo e às vezes até autofágico. É também descontínuo, difuso e descentralizado, mas ao mesmo tempo rico em experiências, narrativas e possibilidades democráticas. (...)

É, portanto um desafio do ativismo anti-racista pensar e atuar simultaneamente em diversas frentes, ativando e mantendo vivas as redes de solidariedades interéticas, dinamizando as potencialidades democráticas do contexto atual e apontando os limites para superação do modelo republicano brasileiro.

Em síntese, embora o racismo anti-negro tenha cedido muito pouco, o anti-racismo, por sua vez, tem avançado mais do que podem permitir ou admitir alguns cânones acadêmicos.

Falar em direitos dos negros e negras e nas ações afirmativas significa exatamente alargar os parâmetros da democracia participativa ainda em construção. Nós, descendentes de africanos, rejeitamos com veemência o alarmismo da negrofobia contemporânea, seja ela advogada pela mídia, ou reverberada pelos setores mais conservadores do pensamento acadêmico brasileiro. Esse pequeno e seleto grupo que anda requentando a comida azeda que Freyre distribuiu há década nas portas das Senzalas Modernas.

A última questão que pode ser pensada é: porque os estudiosos da “identidade nacional” insistem na “originalidade” do mito da democracia racial, preferindo a idealização da “mestiçagem harmoniosa”, ao invés de compreender e sanar os índices de exclusão e violência que entre nós são os mais altos do mundo? Olhando desse prisma, de fato, o pacto racial que tem mantido ereta a espinha dorsal da hierarquia social brasileira está realmente em perigo.

Por Salomão Jovino da Silva, professor de História da África da FSA e sócio do SINPRO ABC.

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