José Roberto Cabrera

Diretor do Sinpro-Campinas

 

Sempre que a gente sente algo estranho acontecendo com nosso corpo, quando suas funções fogem do padrão e nos incomoda procuramos interpretar as possíveis causas. Algumas são tão óbvias que a gente nem se preocupa muito. Uma extravagância no jantar, umas bebidas a mais explicam muitas coisas. Mas quando percebemos que adoecemos procuramos informações a respeito, conversamos com amigos e familiares, recorremos à internet. Se não conseguirmos nada que nos explique o que está, de fato, acontecendo, procuramos um médico.

Se ele for dos bons, depois de conversar um pouco sobre os sintomas e os hábitos e examinar o que for possível, vai buscar causas que, na maior parte das vezes passam despercebidas. Algumas delas dependem de exames, de análises de coisas que não vemos, não conhecemos e sequer sabíamos que existiam dentro de nós. São os tais procedimentos científicos. Eles estão aí para nos ajudar quando nossos recursos se esgotam ou se mostram incapazes de desvendar os mistérios do nosso corpo, da nossa vida, do universo.

 

Isso não quer dizer que o conhecimento científico seja infalível ou capaz de entender ou explicar tudo, mas seria estupidez não utilizá-lo quando os outros recursos não mais nos servem.

 

 

Como olhar para a falta d’água?

 

Os atuais dirigentes políticos que comandam o Estado brasileiro, em todos os níveis e em todas as esferas de poder, são de uma geração que se formou com a certeza de que a água e outros bens naturais eram recursos infinitos no Brasil. Aqui, a natureza sempre foi tratada ou como riqueza (água, terra fértil, florestas, minérios etc.) ou como desafio a ser superado para produção de mais riqueza.

A água, de tão abundante, se pôs transtorno e nas grandes cidades, esse elemento fundante de nossa relação com o mundo natural, foi ilusoriamente domado, cimentado e transformado em escoadouro de detritos e de todo tipo de sujeira imaginável.

Tomando São Paulo como referência, fica evidente essa relação desde a fundação: “O local era uma elevação, na confluência de dois rios. Oferecia vantagens várias. Água próxima, bom clima, segurança. Como se tratava de uma elevação, permitia que se divisasse o inimigo ao longe. (...) Um dos rios, o Anhangabaú, limitava-a no lado mais voltado para noroeste, o outro, o Tamanduateí, no lado nordeste, formando ambos um “V”. O terceiro lado, além de protegido por escarpa abrupta, dava para uma várzea que, de tão úmida, oferecia como que uma terceira barreira aquática a quem pretendesse aceder à colina. (...) O Anhangabaú, que viria a ser enterrado, cortava ao meio do vale que conserva o mesmo nome. O Tamanduateí, antes de ser corrigido seu curso, corria por onde se abriria a rua 25 de Março”. (TOLEDO, 100)

 

Hoje as várzeas que caracterizavam a cidade foram engolidas pela especulação imobiliária e pelo asfalto. A Prefeitura de São Paulo contabiliza 300 cursos d’água enterrados na cidade, totalizando algo em torno de 4 mil quilômetros, que se faziam notar nas temporadas de chuvas intensas.

A canalização de rios e córregos, além de subtrair as várzeas e o material orgânico que os mantém vivos, impõe percursos que aceleram a velocidade e ampliam seus efeitos.

A grande mídia, de uma maneira geral, aborda a crise hídrica – nunca é desabastecimento - olhando para cima: se vai ou não chover? Ou então, como podemos economizar esse recurso? Cada um fazendo sua parte.

Esse tipo de abordagem passa distante do entendimento maior da questão.

A comunidade científica concorda que houve mudanças no ciclo das chuvas, mas diverge em relação às causas disso. Enquanto uns apontam a existência de períodos históricos mais secos que outros e que estamos atravessando um desses, outros focalizam que a seca acentuada deriva de transformações operadas pela industrialização e a produção em larga escala, que alterou as condições de reprodução na natureza e que tem no aquecimento global um de seus principais efeitos.

Apesar da existência de programas para melhoria do acesso à água, as condições desse acesso ainda são precárias. Segundo o relatório Glass, de 2014, da OMS (Organização Mundial da Saúde) cerca de 748 milhões de pessoas não tem acesso à água necessária à sobrevivência e outros 1,8 bilhões consomem água contaminada. No Brasil, que possui 12% de toda água doce disponível no planeta cerca de 40 milhões de pessoas não tem acesso à água tratada, seja nas regiões afetadas historicamente pela seca como também nas periferias das grandes cidades. Segundo a OMS de cada US$ 1 gasto com tratamento de água e esgoto há um retorno de US$ 4,3 em redução de gastos com saúde, aumento da produtividade e criação de novos empregos em atividades relacionadas ao tratamento.

Ainda que o ciclo das chuvas tenha alterado o panorama, existem ações que podem diminuir os impactos e ampliar a disponibilidade de água no Brasil. Hoje, o avanço do agronegócio consolidou uma situação desoladora sobre os rios do país; em que pese haver legislação específica, a mata ciliar desaparece rapidamente na maioria deles. Quando observamos os rios responsáveis pelo abastecimento dos reservatórios a situação é desoladora. Pasto e eucalipto compõem a paisagem de boa parte dos rios da região sudeste, que ainda sofre com o escoamento de toneladas de agrotóxicos das lavouras para os leitos e o lençol freático.

Em outras palavras, as chuvas são apenas parte do problema. A saúde dos rios, a preservação das nascentes e das florestas que permitem a reprodução do seu fluxo ficam de fora da agenda política e os governantes continuam olhando pro céu e esperam passivos e ansiosos pela previsão do tempo.

Água como direito

A vida humana se desenvolveu a partir de uma série de lutas, conscientes ou não, em defesa da manutenção e do acesso aos bens comuns. Esses, por sua vez, “são as redes da vida que nos sustentam. São o ar, a água, as sementes, o espaço, a diversidade de culturas e o genoma humano. São uma rede tecida para gestar os processos produtivos, reprodutivos e criativos. São e nos proporcionam os meios para nos alimentarmos, comunicarmos, educarmos e nos transportar, e até os meios que absorvem os dejetos de nosso consumo”. (HELFRICH, S. 22)

A defesa desses princípios permanece como elemento fundante de nossa natureza biológica, social e cultural. Estabelece uma relação direta com a ideia de direitos, os quais os cidadãos exigem de seus Estados o cumprimento. Embora essa relação nem sempre se configurou possível, nem seu entendimento claro, “as lutas políticas pelos bens comuns definiram as condições de vida das sociedades no passado. De fato, com alguma sofisticação a mais, também regulas as nossas. Essas lutas também vão definir os direitos das gerações futuras”. (VERCELLI, A & THOMAS, H., in HELFRICH, 62)

As lutas pelo direito à água como bem comum acompanham a história de nossa civilização.

No debate sobre esses direitos, Garret Hardin publicou na trágica sexta-feira 13, de dezembro de 1968, dia do AI-5, um artigo na revista Science nº 162, chamado “The tragedy of the commons”. Nele, o autor, faz uma abordagem liberal acerca do gerenciamento dos bens comuns, indicando que como esses bens são, ao mesmo tempo, de todos e de ninguém, vivem no abandono. Para ele, existem duas formas de evitar a total destruição dos bens comuns pelo uso intensivo: ou a gestão pública pelo Estado ou a privatização dos mesmos. Hardin sustenta que a administração pública desses recursos tende a ineficiência, uma vez que não existem incentivos econômicos e sociais para que os gestores invistam na preservação e ampliação das condições de reprodução desses bens comuns. Desse modo, talvez fosse necessário transformá-los em coisas privadas para que seus proprietários os preservassem, a partir de incentivos econômicos que receberiam ou da cobrança direta ou de mecanismos indiretos.

Essa premissa cimentou o caminho do neoliberalismo nos anos seguintes e levou para o interior do debate sobre os bens comuns um componente privado que obedece a lógica do negócio, do lucro individual, criando uma zona de conflito entre os direitos, as necessidades, o ganho privado e o interesse público.

A água: o caso extremo

A água é um desses casos emblemáticos. O acesso à água demanda investimentos, tecnologia e gestão para garanti-la enquanto direito.

No entanto, a crise dos anos 80, os cortes em gastos públicos e os processos de privatização introduziram nos serviços de fornecimento de água e esgoto cálculos próprios da lógica do lucro. Esses se realizam a partir da premissa determinada não pelo direito nem pela natureza, mas pelos ciclos do próprio capital. O investimento deve ser realizado num prazo e dentro de uma lucratividade média determinada pelo mercado, e aqui está o nó da questão da crise hídrica e de desabastecimento gerida pela Sabesp.

Ainda que o governo do Estado de São Paulo detenha 50,3% das ações da empresa, a lógica de funcionamento é determinada por seus acionistas na Bovespa e na NYSE. O lucro líquido anunciado pela Sabesp em 2010 foi de R$ 1,6 bilhões, em 2011 de R$ 1,22 bi, em 2012 de R$ 1,9 bilhões, em 2013 de R$ 1,923 bilhões e em 2014 de R$ 903 milhões.

Essas contradições estão presentes, por exemplo, nos contratos de Demanda Firme que continuam a ser assinados apesar da crise, e que oferecem às empresas condições melhores, com um custo menor, mas com um compromisso de consumo, passando longe do debate acerca da economia de água. Por exemplo quando diz que: “A unidade usuária que apresentar consumo de água e/ou coleta mensal inferior a 500m³/mês, por três meses consecutivos, será excluída do contrato”. Nesses é expressamente proibido a utilização de fontes alternativas, de água de reuso, pois “os imóveis abastecidos por fontes alternativas não se beneficiarão das condições desse contrato”. (Brasil de Fato, 628)

Tais contradições expõem conflitos jurídicos e políticos intensos. Os comitês de bacias operam de forma articulada, assim como a Agência Nacional de Águas, no entanto, esbarram com lógicas distintas e contraditórias, as quais colocam os direitos dos cidadãos em segundo plano. Ainda que existissem uma série de indícios da redução das chuvas, a Sabesp operou sem se preparar para o pior. Não investiu na ampliação das reservas físicas, mas ampliou captação de recursos instalando relógios para cobrança, não investiu na diminuição das perdas, que hoje giram em torno de 30%, mas vem reduzindo seu quadro funcional de forma acelerada, não operou mecanismos de transposição de sistemas de reservatório, mas não diminuiu os gastos em propaganda. Enfim, no final das contas o cidadão, transformado em consumidor, é cada vez mais penalizado, enquanto os acionistas usufruem de seus dividendos.

O público, público

Passados mais de duas décadas de ajustes neoliberais, as populações já conseguem identificar, em várias partes do mundo, os limites sociais, políticos e econômicos da lógica privatista da gestão dos bens comuns. A batalha das águas em Cochabamba nos anos 2000 anunciou um caminho para lidar com esse direito. Os cidadãos de Roma e de Paris retomaram o controle sobre suas águas. Nesses momentos de crise abrem-se possibilidades inovadoras que não devem ser desprezadas. O controle público sobre o que é público pode introduzir uma nova dinâmica para esse novo século.

 

Maquiavel, em O Príncipe, sustenta que o mesmo deve compatibilizar a Fortuna e a virtú para garantir a manutenção no poder. Para explicar o significado desses termos recorre ao seguinte exemplo: “Comparo a fortuna a um daqueles rios, que quando se enfurecem, inundam as planícies, derrubam árvores e casas, arrastam terra de um ponto para pô-la em outro: diante deles não há quem não fuja, quem não ceda ao seu ímpeto, sem meio algum de lhe obstar. Mas, apesar de ser isso inevitável, nada impediria que os homens, nas épocas tranquilas, construíssem diques e canais, de modo que as águas, ao transbordarem do seu leito, corressem por estes canais ou, ao menos, viessem com fúria atenuada, produzindo menores estragos. Fato análogo sucede com a fortuna, a qual demonstra todo o seu poderio quando não encontra ânimo (virtú) preparado para resistir-lhe e, portanto, volve os seus ímpetos para os pontos onde não foram feitos diques para contê-la”. (MAQUIAVEL, N. in WEFFORT, F., pg. 43)

O momento de crise é aquele onde se afloram as ideias e ações capazes de desenhar um futuro distinto. Os movimentos sociais urbanos e rurais, os sindicatos, aqueles que lutam em defesa dos direitos humanos, os partidos do campo progressista precisam assumir essa luta como estratégica, capaz de condensar as contradições mais profundas do capitalismo, assim como definir novos modelos de gestão dos bens comuns e dos direitos. Esse momento é o mais propício para se colocar em questão nosso modelo de urbanização e nossa relação com a natureza.

Imagino que a luta pela despoluição do Tietê e de outros rios é tarefa imediata e os atuais governantes já demonstraram não terem a virtú necessária para lidar com isso, obcecados pela lógica do mercado. Aos movimentos sociais está posto o desafio. Alguns deles já têm acumulado uma história de luta, resistência e preservação. Isso tem que ganhar as ruas e os corações em todos os lugares.

Quem sabe uma grande rede formada para ocupar e proteger as nascentes dos nossos rios? Poderia ser um começo.

 

Bibliografia:

Brasil de Fato, nº 627, 628

HARDIN, G. – The Tragedy of the commons, Science, 162, 1968.

HELFRICH, S. – Genes, Bytes y Emissiones: Bienes comunes y cidadania, Copyleft, 2008.

TOLEDO, R. P. – A Capital da Solidão

WEFFORT, F. – Os Clássicos da Política vol.1, São Paulo : Ática, 2004.

 

 


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